08/12/2021 às 16:59, atualizado em 14/12/2021 às 14:33

Leila Diniz, doce e humana

“Já que ninguém me chama para dançar”, documentário de abertura da 54ª edição do FBCB, resgata a memória da atriz transgressora, ousada e polêmica

Por Agência Brasília* | Edição: Renata Lu

Um dia, no verão de 1965, as freiras do Sagrado Coração se distraíram e, não deu outra. Lá estava Ana Maria Magalhães, em pleno Arpoador, Ipanema, sol a pino, numa guerra de areia com Leila Diniz. Isso, claro, bem antes de ambas se consagrarem como artistas, e a brincadeira, inocente, que terminaria “num grande mergulho nosso”, selar união de uma vida inteira.

“Um dos motivos principais de eu ter feito esse filme é o resgate da memória da Leila. É uma pessoa que precisa ser lembrada sempre e ela andava muito esquecida”, lamenta a diretora Ana Maria Magalhães | Foto: Divulgação

Raro registro

Então encomendado pelo Centro Cultural Cândido Mendes para marcar os dez anos da morte de Leila Diniz, o documentário não vingou na época por falta de recurso. Apesar do imbróglio, a equipe concordou em gravar o projeto até o fim, realizando uma edição de 90 minutos que ficaria inédita por mais de 30 anos.

“O filme foi gravado em vídeo, que naquela época não conversava com o cinema. Até que, ao digitalizá-lo, na Cinemateca Brasileira, em 2015, fui alertada pelo restaurador Fabio Fraccarolli de que o filme estava morrendo”, conta a cineasta. “Por ter sido gravado em U-Matic, algumas partes já estavam irrecuperáveis. Foi aí que decidi restaurar as entrevistas, conseguir os trechos de filmes em tecnologia mais avançada, construir outra trilha sonora e reeditar tudo”, explica.

Raro e emblemático registro de uma das mais revolucionárias personalidades brasileiras dos anos 1960, o documentário é rico de memória, afeto e vida, assim como foi Leila nos ligeiros 27 anos em que viveu. Ou seja, uma mulher que tirava de letra o dia a dia e não “fundia a cuca”, como diz um dos entrevistados no filme.

É o retrato não apenas de uma artista moderna em constante atrito com o conservadorismo de parcela da sociedade da época, mas também uma radiografia de um Rio de Janeiro da boemia, de certa inocência e do romantismo desmedido e, porque não, das maldades sem vilanias.

Leila Diniz, Ruy Guerra e Ana Maria na piscina do Hotel Nacional | Foto: Orlando Britto

Na opinião do cineasta e curador do 54º FBCB, Sílvio Tendler, um dos méritos do documentário de Ana Maria Magalhães é o de destacar também o lado humano e doce da artista, expondo não apenas a figura revolucionária e intrépida, mas também uma mulher alegre e divertida, irreverente e alto astral. Mais do que isso, o de uma pessoa totalmente espontânea, sem amarras ou restrições, mas também cheia de dúvidas e inseguranças.

“Temos uma imagem da Leila totalmente transgressora e revolucionária, um personagem iconoclasta dos anos 1960 que falava palavrão e usava roupas ousadas, mas tudo sem maldade. O filme vai tirar essa aura de uma pessoa difícil e devolvê-la ao papel de doce”, comenta Tendler, que a conheceu em 1968, às vésperas do Ato Institucional N° 5, durante inauguração de um Cine Clube em Jacarepaguá.

“Íamos inaugurar o Cine Clube Leila Diniz, fomos todos juntos num fusca, cinco pessoas, além do motorista e do representante do Cine Clube, eu, o Toquinho (músico) e ela, que era uma pessoa muito agradável, uma flor”, recorda.

Para a cineasta Ana Maria Magalhães, o resgate desses dois lados de uma mulher que mexeu com a rotina de uma sociedade conservadora e ainda em transformação no que tangia conceito e comportamento, é fundamental, lançando luz para as novas gerações. Sobretudo no que diz respeito “à igualdade entre homens e mulheres, às relações mais afetuosas entre as pessoas, à fraternidade entre pessoas de gêneros diversos, à sonoridade genuína na relação com as amigas e à entrega nas relações amorosas”.

“Um dos motivos principais deu ter feito esse filme é o resgate da memória da Leila. É uma pessoa que precisa ser lembrada sempre e ela andava muito esquecida”, lamenta Ana Maria. “Não considero a Leila uma figura anárquica. Ela foi até bastante coerente com o que pensava e sentia. A importância dela é histórica, em primeiro lugar, por causa dos caminhos que abriu para as mulheres e a mudança dos costumes”, destaca.

A Brasília da cineasta

Filha de parlamentar, desde cedo, a atriz e cineasta Ana Maria Magalhães mantém relações estreitas com a capital do país e o Festival de Brasília. A primeira vez que chegou à cidade tinha 10 anos, em 1960, portanto, cinco anos antes da criação da mostra de cinema por Paulo Emílio Salles Gomes e demais intelectuais da Universidade de Brasília.

Entre 1969 e 1977, ela era figura constante no evento e nos principais points da cidade, como o próprio Hotel Nacional e o bar e restaurante Tabu. No final dos anos 1970, integrou o elenco do filme “A Idade da Terra”, último projeto do cineasta baiano Glauber Rocha, com grande parte das cenas rodadas no DF. “Tenho imenso orgulho de ter participado desse que considero um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. O encontro artístico com o Glauber foi maravilhoso, nos gostávamos como irmãos”, diz cheia de saudade.

“Até depois de 1964, quando meu pai foi cassado, continuei a ir a Brasília. Meu irmão morava na cidade e minhas sobrinhas ainda moram. O Festival de Brasília era uma verdadeira festa ao tempo em que o frequentei. Foi sempre uma alegria participar do festival, que é a casa do cinema brasileiro”, reflete.

O filme pode ser visto gratuitamente na plataforma InnSaei.TV.

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Programação – 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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A edição 54 – 2021

*Com informações da Secretaria de Cultura e Economia Criativa