17/01/2022 às 20:30, atualizado em 18/01/2022 às 11:48

Cine Itapuã, no Gama, mais perto de ser devolvido ao público

Estão sendo investidos R$ 463 mil; reforma vai pôr fim a 18 anos de descaso com o espaço que é parte da história da cultura no DF

Por Agência Brasília* | Edição: Rosualdo Rodrigues

Se houvesse um filme em cartaz no Cine Itapuã, seria um longa-metragem sobre recomeço e superação. Hoje, quem passa pela Praça Lourival Bandeira, no Gama Leste, testemunha o incessante entra e sai de operários empurrando carrinhos de mão repletos de material de construção.

Noite de casa cheia, nos tempos áureos do histórico cineteatro do Gama

Para além de árvores e bancos de concreto, no local existe um coreto em formato de palco que abriga diversos tipos de atrações culturais. Recentemente, a Administração Regional do Gama solicitou à Novacap a reforma desse espaço público.

Memórias vivas

A notícia de recuperação do Cine Itapuã reaviva as memórias dos moradores e artistas que tocaram nesse importante espaço cultural do DF. Regente da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (OSTNCS), o maestro Claudio Cohen relata que a OSTNCS sempre praticou uma política de descentralização de suas atividades nas regiões administrativas do DF. No Gama, o espaço que sempre atendeu às apresentações foi o Cine Itapuã.

“Realizamos apresentações entre as décadas de 1980 e 2000. Creio que nossa última apresentação por lá foi em 2005. Os concertos ocorriam, em geral, aos sábados à tarde e sempre tínhamos um ótimo público”, ressalta Cohen.

“O espaço possui grande competência para espetáculos e cinema. Queremos o Cine Itapuã em plena atividade”Júlio Teixeira, advogado, músico e antigo frequentador do Itapuãesquerda

Morador do Gama desde criança, o advogado e músico Júlio Teixeira, 52 anos, elege o Cine Itapuã como o seu lugar preferido da cidade. Membro de uma comunidade católica, o Grupo Átrios, Júlio lançou o primeiro álbum de sua banda em 1999.

“Como vi o Gama crescer, acompanhei todas as fases do Cine Itapuã, como frequentador do cinema e da praça. Essa agitação cultural movimentava a juventude na minha cidade. O lançamento do nosso álbum marcou a história da comunidade católica gamense. O espaço possui grande competência para espetáculos e cinema. Queremos o Cine Itapuã em plena atividade”, destacou Júlio.

Passeio escolar

Nascido no Gama, o vendedor Fábio Leal, 40 anos, conta que o Cine Itapuã marcou a sua primeira visita a uma sala de cinema. Ele destaca que, na década de 1990, o cinema era “a coisa mais linda do mundo para as crianças. Era o sonho de passeio escolar.”

Ivone Felício teve seu primeiro emprego como bilheteira do Cine Itapuã, de 1978 até 1980 | Foto: Acervo pessoal

“Na época, meu pai era gerente do cinema. Aos domingos, após a missa, na Igreja São Sebastião, a praça lotava e todo mundo ia para o cinema depois. As matinês também faziam muito sucesso, e o filme que mais me lembro da época foi O Jogo da Morte, de Bruce Lee”, relembrou Ivone.

Astro do cinema

O Cine Itapuã foi inspiração para jovens cineastas de destaque no país, a exemplo do lendário cineasta e bombeiro Afonso Brazza (1955-2003), que cresceu no Gama. Foi para lá que seus pais piauienses migraram para ganhar a vida fora do Nordeste.

Afonso Brazza também ficou conhecido como o “Rambo do Cerrado” e fez cinema com o que podia: filmava com negativos quase vencidos, entre outras saídas criativas. Com poucos recursos, transformou o que seria uma precariedade técnica em estética. Hoje, o cineasta enumera admiradores e amigos no Gama e em todo o país.

Brazza produziu filmes de ação, sempre utilizando Brasília e o Gama como cenário. O primeiro filme – Inferno no Gama (1993), lançado no Cine Itapuã – conta uma história de crime e vingança passada na cidade. Na película, atuou ao lado da mulher, a atriz Claudette Joubert. O gênero trash do cineasta brasileiro mostrou sua originalidade de fazer cinema na cidade. Ao todo, Brazza assinou a direção de oito filmes e atuou em 13, todos de baixo orçamento.

Primo-irmão do Cine Brasília, o Itapuã foi inaugurado em 28 de março de 1961, e gerenciado pela empresa de cinema paulista Paulo de Sá Pintoesquerda

“Eu quero estar sempre na memória das pessoas, mas lentamente. A fama leva à destruição, é instantânea e por isso mesmo faz mal, faz você passar por cima de tudo, inclusive dos amigos. A fama é curta. Quero admiração e respeito. É uma fama simples, do meu jeito”, declarou certa vez o cineasta.

Brazza morreu aos 48 anos de idade, vítima das complicações de um câncer no esôfago. Ele deixou Fuga sem Destino, o último filme, inacabado. Ainda no leito do hospital, pediu ao amigo e cineasta Pedro Lacerda para que não deixasse seu filme parado.

Lacerda aceitou o desafio e, em 2006, concluiu Fuga Sem Destino, que teve sua estreia no Festival de Brasília com a presença de todo o elenco e também do ator e diretor Selton Mello, que planeja desenvolver um projeto sobre o cineasta bombeiro.

O legado do bombeiro-cineasta também rendeu a homenagem Afonso É uma Brazza, de Naji Sidki e James Gama, que saiu do 48º Festival de Brasília com o Candango de melhor curta-metragem eleito pelo júri popular.

Falência e venda

Primo-irmão do Cine Brasília, o Itapuã foi inaugurado em 28 de março de 1961, e gerenciado pela empresa de cinema paulista Paulo de Sá Pinto. Projetado pelo engenheiro Ciro Loddo, o local foi considerado o segundo maior cinema de Brasília.

Era uma das principais opções de lazer durante décadas para a população do Gama e arredores. Filmes brasileiros e infantis marcavam as exibições, que lotavam o cinema. Na Semana Santa, as produções religiosas também atraiam centenas de espectadores.

Filmes brasileiros e infantis marcavam as exibições, que lotavam o cinemaesquerda

Após a saída da empresa Sá Pinto, em 1986, o cinema sofreu uma pequena reforma e, em 1988, veio a ser reinaugurado, sob a administração do Cineclube Porta Aberta. Nessa época, foram exibidos filmes de arte, além da programação simultânea do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB). Foram lançados inúmeros títulos nacionais, além de vários filmes em formato de curtas, médias e longas-metragens.

Na época, os jovens gamenses eram vistos nas sessões de kung-fu e também de cinema adulto. Passaram por lá a polêmica fita francesa Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard; e as nacionais Feliz Ano Velho, de Roberto Gervitz, e A Marvada Carne, de André Klotzel.

Em 1990, durante o governo Fernando Collor de Mello, a instituição que movia a indústria de audiovisual no país, Embrafilme, fechou as portas, inviabilizando a produção cinematográfica brasileira e forçando o fechamento de cinemas pelo Brasil afora.

Em 1991, o Cineclube Porta Aberta deixou o espaço do Cine Itapuã. Em péssimo estado de conservação, a sala foi destinada a encontros da comunidade e shows de rock, transformando-se no Centro Cultural Itapuã.

Comprado em seguida por um grupo de lojistas da cidade, o local foi doado ao Governo do Distrito Federal (GDF) ainda na década de 1990, mas só foi oficializada a carga patrimonial em 2012, quando o cinema se encontrava fechado e degradado desde 2005.

Após esse período, houve tentativas frustradas de gestões anteriores de revitalizá-lo, com audiências públicas que não se concretizaram.

*Com informações da Secretaria de Cultura e Economia Criativa