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01/03/2019 às 14:42, atualizado em 21/10/2019 às 16:09
Novo diretor da instituição administrada pelo GDF, Charles Cosac fala dos planos para aquecer a cultura em Brasília e sobre sua relação com as artes e a cidade
O flerte com Brasília e o desejo antigo de estar à frente de uma instituição de artes pesaram no “sim” que Charles Cosac deu ao deixar São Paulo e vir comandar o Museu Nacional da República Honestino Guimarães, na capital federal. A “oca” sem janelas de Oscar Niemeyer – que chegou por último à Esplanada dos Ministérios e “engoliu” a Catedral aos olhos de quem passa pelo centro da capital – se prepara para um revés. Basta de ser um museu hospedeiro de exposições de pequeno porte e vernissages que nem sempre dizem a que vieram. Cosac quer mais: pretende dar identidade ao museu administrado pelo Governo do Distrito Federal (GDF) e, por isso, já trabalha para alterar a programação de 2019 pré-definida no ano passado.
O Museu Nacional da República foi inaugurado em dezembro de 2006. Conta com seis salas de exposição, das quais duas serão desativadas – e uma delas direcionada a trabalhos educativos, integrando o visitante a obras da exposição.
A vida ligada às artes desse brasileiro de 55 anos, de pai e mãe sírios, apaixonado por Ouro Preto (MG), por moda e influenciado por elementos da cultura estrangeira, dá o norte do que deve vir nos próximos quatro anos à frente do museu. Em 1996, ele revolucionou o mercado editorial de livros de arte com a Cosac Naify, editora fechada por ele em 2015.
Por dois anos, esteve à frente da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Em janeiro, Cosac assumiu o bastão das mãos de Wagner Barja, que esteve na administração do Museu Nacional por 12 anos. “Eu quis ser artista quando criança, aos 13 anos. Desisti aos 13 anos e meio, mas continuei naquele sonho de querer trabalhar com arte”, conta.
Em um gabinete compartilhado, “protegido” por uma imagem barroca de São Miguel Arcanjo de mais de 1,2 metro de altura, da primeira metade do século 18 – que ele leva para aonde vai –, Charles Cosac recebeu a equipe da Agência Brasília. Vestido com seu emblemático roupão sobre um sóbrio terno preto, ele falou da sua mudança de casa e de cidade, dos planos para o Museu Nacional na sua gestão, de liberdade de expressão e do que pretende fazer para atrair o público iniciante e iniciado às artes da cidade.
Como se deu a sua vinda para Brasília?
Eu sempre flertei com Brasília. É uma cidade que esteticamente eu acho muito bonita. Vim aqui muitas vezes. Tenho vários primos-irmãos que residem aqui. Sou muito amigo do [artista plástico] Siron Franco, que mora em Goiânia (GO). Então, por causa dele eu vim muitas vezes a Brasília. Mas não era uma cidade que eu conhecesse muito – só como turista, em viagens curtas.
É tudo muito diferente para o senhor, que tem apartamento em São Paulo e já morou fora do país? Como está sendo a sua rotina por aqui?
A rotina quem impõe sou eu, não é a cidade que impõe sobre mim. Geralmente eu trabalho e durmo, então isso pode ocorrer em qualquer cidade do mundo. Não é a minha cidade natal e eu não tenho relacionamentos, grupo de amigos, médicos, advogados. Tenho relações ainda distantes.
Em que condições o senhor encontrou o Museu Nacional da República?
O museu é quase que um milagre, é maravilhoso e está em boas condições. A gente está tentando dar um rumo ao acervo, uma voz ao museu, para não ficar um hospedeiro de exposições. O professor [ex-diretor do museu Wagner] Barja fez exposições elementares, divisores de água. Admiro muito o trabalho dele. Mas a grade deste ano já estava muito fraca. Cancelei várias exposições. Geralmente são [artistas] premiados do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Cultura do DF ou exposições que estão itinerando, mas que acabavam passando por aqui por uma questão de oportunidade. Tinham autoconvites o tempo todo. Mesmo sem dotação, sem grandes recursos, eu acho que a gente pode fazer uma seleção e mostrar o que interessa mais.
É a sua primeira experiência como diretor de um museu. Era um desejo?
É, eu nunca havia dirigido um museu. Eu sempre quis trabalhar num museu, não necessariamente como diretor, porque o diretor é o que trabalha menos com arte. Tem os aspectos administrativos, milhões de contratos, tem toda uma burocracia. Tem o pessoal que trabalha no museu que eu tenho que contemplar, [uma função] que não leva, necessariamente, à sala de exposição ou à curadoria em si. Não chega a ser prosaico, mas é mais administrativo do que criativo.
Mas um museu do porte do Nacional lhe proporciona exercer esse trabalho de curadoria?
Eu espero que sim, o quanto antes. Eu tenho que ser gerente também, mas não só isso. O diretor tem que ser o zelador, tem que conservar, saber de tudo do museu: do elevador, da segurança, da limpeza, contratos que são feitos com a Secretaria de Cultura… Tenho que me inteirar de uma série de papéis, doações, se estão em dia, se está tudo patrimoniado, onde está o documento da obra que foi doada… Enfim, é uma parte mais burocrática, mas não dá para começar sem ela.
Em que a sua experiência como ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, servirá para comandar o Museu Nacional?
A minha experiência com a arte começou muito cedo. Foi muito ambígua. Não sei se ela me levaria forçosamente à direção de um museu, embora eu tenha aceitado o convite. Primeiro, há a minha relação com as artes visuais. Eu quis ser artista quando criança, aos 13 anos. Desisti aos 13 anos e meio, mas continuei naquele sonho de querer trabalhar com arte. E encontrei na Cosac Naify [editora de livros de arte que revolucionou o mercado editorial no Brasil por 19 anos, de propriedade de Charles], numa outra fase da minha vida, um modus operandi de uma forma de trabalhar com arte sem ser artista, que era realizando monografias de artistas. Antes, eu tive experiência como estagiário em alguns museus. Trabalhei no Museu de Belas Artes de São Francisco (EUA), trabalhei em Berkeley (EUA), no Berkeley University Museum e, durante o meu período de escola, a gente fazia estágios pontuais. Fiz um estágio no departamento de vidros no V&A [Victoria and Albert Museum, Londres] e trabalhei um pouco com escultura britânica. Mas eu era bem jovem, tinha 20 e poucos anos.
Apesar da emblemática arquitetura e de estar no centro de Brasília, o Museu Nacional é um pouco apagado, seja pela programação, seja pela frequência. O que pretende ser feito para reverter isso?
Eu discordo que ele seja apagado. Ele tem grande visitação, talvez seja uma visitação incidental. É um fenômeno que ocorre muito com a museologia. Se você vai a Nova York, você se sente compelido a visitar o Whitney Museum, o Moma PS1… sem se preocupar em saber o que está sendo visto lá, tamanha a riqueza dessas entidades. Aqui, por questões inversas, acontece a mesma coisa. O público vem, independentemente da exposição. Então, apagado ele não é. Agora, eu gostaria que essas visitas gerassem mais frutos do que uma mera visita. Eu acho que qualquer pessoa, de qualquer nível social e escolaridade, ao ter o primeiro, o segundo ou o décimo contato com a arte, pode passar a querer a ser artista ou trabalhar com arte. Eu vejo museu também como um processo didático e catalizador. Um museu também tem que indicar.
E como isso é possível aqui?
Com recortes mais historiográficos, que eu pretendo fazer, e que ocupem o museu inteiro. Que não sejam seis exposições individuais de seis artistas locais, como tem sido.
O que já vem sendo pensado?
Estamos pensando em trazer, no início do ano que vem, a história da arte no Brasil, com a Fundação Edson Queiroz, fundação maravilhosa com um acervo riquíssimo. Isso iria beneficiar muito a sociedade que vem aqui e, se quisessem, entenderiam os principais períodos da arte no Brasil. O museu se chama Nacional da República, mas ele não segue à risca o nome dele, senão não teria tanto samurai por aqui. Eu acredito que, adotando uma postura mais museológica [seria mais interessante]. É que a palavra museologia vem embebecida de um certo peso, como se museu fosse poeira, fosse velharia. Mas é melhor esse recorte museológico do que mostras muito salto alto, muito esotéricas, feitas para iniciados nas artes visuais.
É melhor, então, ter esse recorte museológico do que…
Do que ser um hospedador de exposições.
É isso que o senhor não quer?
Eu não quero um museu-hotel. E já comecei a escrever para todo mundo dizendo isso. As pessoas já ligam perguntando se tem disponibilidade. “Tem disponibilidade pra quê?” Não, não tem disponibilidade. O museu não tem dotação [orçamentária]. O artista que expuser aqui vai ter que deixar uma obra. Essa obra só vai ser aceita se passar pela comissão técnica. A gente não quer virar um porta-coisas. Isso vai me gerar muita impopularidade, mas eu não estou em busca de popularidade.
Está em busca de quê?
De trabalho. E resultados.
Do que sobrevive o museu?
[De recursos] da Secretaria de Cultura. É um museu caro. A manutenção é cara pela metragem, ar-condicionado, luz, funcionários… Todo um staff com o qual a secretaria arca. E a gente tenta entrar em acordos de cooperação com outras entidades, para trazer exposições e fazer exposições mais longevas, que ocupem todos os espaços do museu, que tenha educativos e que venha para ficar três, quatro meses. Se eu conseguir fazer quatro dessas por ano, vou estar bastante satisfeito.
É possível trazer exposições com apelo mais popular, no sentido de despertar o interesse de um público mais amplo que não está acostumado a frequentar museus, mas se sentiria atraído por uma mostra?
Estranhamente, isso não ocorre aqui. Essa questão do popular e do erudito é muito dúbia. As pessoas acham que o popular dialoga com o pobre e o erudito com o rico. Isso não é verdade. Quando se realizam concertos de música clássica em parques públicos ao livre, todo mundo vai. E ninguém vai de salto alto e casaco de pele. O que acaba elitizando somos nós mesmos. O museu está ao lado da rodoviária (do Plano Piloto). Nada impede que as pessoas venham aqui. Se elas vão encontrar um recorte museológico, ou mais contemporâneo, isso dependerá da direção do museu. Tudo é uma questão de viabilizar o acesso. E além de rico e pobre, eu me preocupo muito com portadores de deficiência, seja auditiva, visual ou locomotiva. Estou tentando, a muito custo, trazer essas pessoas a visitarem o museu. Não vejo aqui em Brasília muita preocupação com a acessibilidade, medidas menos excludentes. Apesar de ser a cidade das rampas, o museu ainda não está muito pronto para receber pessoas com certas necessidades.
“As pessoas acham que o popular dialoga com o pobre e o erudito com o rico. Isso não é verdade. Quando se realizam concertos de música clássica em parques públicos ao livre, todo mundo vai. E ninguém vai de salto alto e casaco de pele. O que acaba elitizando somos nós mesmo”
Mas teria que promover alterações na estrutura?
Não, não tem que mexer em nada. Basta criar adaptações em braile, por exemplo, fazer os contatos, arrumar os ônibus [para trazer as pessoas]… Estou tentando entrar em contato com entidades ligadas a essas pessoas e convidá-las. É muito fácil. Não é complicado.
O senhor encontrou um bom acervo no museu?
Não, não. Primeiro, porque o acervo do museu é do MAB [Museu de Arte de Brasília]. Nós estamos aqui como fiéis depositários. Não posso contar esse acervo como sendo do Museu Nacional da República. O segundo acervo foi de uma coleção particular. Toda coleção particular é tendenciosa. Tem pontos altos, outros baixos, mas é pouco para o museu. E tem diversos prêmios, diversos prêmios que são promovidos aqui em Brasília, cujos laureados acabam doando a obra para o museu. Mas, para um museu dessa envergadura, em quatro anos a gente terá que fazer muito mais por ele no que diz respeito a acervo. Nós temos que ter obras fundamentais, o ABC da arte brasileira, e isso não é difícil. Nenhum museu do Brasil ou do mundo tem política de aquisição ou dinheiro para trabalhar.
A liberdade de expressão na arte vem sendo questionada nos últimos temos. Temos episódios de censura a exposições que atentariam contra a moral da família. Isso o preocupa?
Aqui não existe nenhuma pressão em relação a isso. Não há nenhuma instrução do meu chefe direto, que é o secretário [de Cultura] Adão [Cândido], e de mais nenhum outro imediato. Eu até estou me sentindo muito livre, até mesmo perto da biblioteca Mário de Andrade, onde tinha uma lista de instruções do que fazer e do que não fazer. Aqui vejo um campo muito mais aberto, muito mais solto.
O senhor também é muito ligado à moda. Exposições do tipo estão sendo pensadas?
Eu adoraria, porque eu gosto de moda, mas não só disso. Eu acho que indumentária é cultura. Por meio dela se sabe de tudo, é belíssima. Mas penso também que poderíamos fazer exposições de vultos da sociedade brasileira. O museu abriu com uma exposição de Oscar Niemeyer. Eu adoraria fazer uma exposição sobre Darcy Ribeiro, por exemplo. Não seriam só exposições de arte – digamos também de cantores brasileiros. Eu não queria me prender só às artes visuais. Existem outros assuntos que dialogam com o museu e que poderiam muito bem caber aqui dentro.
O senhor assumiu a direção do museu com a programação de 2019 definida no ano passado, mas já sinalizou que irá alterá-la. O que podemos esperar para os próximos meses?
Existem três exposições importantes. Vai começar agora a exposição Toyota – O ritmo do espaço, com a Denise Mattar, que é uma artista de São Paulo da colônia nissei. Uma exposição muito bonita que eu assisti antes de vir. Estamos tentando trazer a Liuba [Wolf, artista do leste europeu], o Farnese de Andrade – esses não estavam previstos. A Leda Catunda já estava prevista para o final do ano. E eu tomei a iniciativa de fechar dois espaços expositivos. Era uma programação massacrante. Uma média de 50 vernissages por ano que não iriam levar ninguém a lugar nenhum.
É possível fazer um trabalho conjunto com a Biblioteca Nacional de Brasília, aqui ao lado?
Totalmente. É tudo que eu quero, um museu e uma biblioteca próximos. Eu queria que eles fossem colados, porque em todas as exposições que a gente fazia na Mário [de Andrade], a gente usava dos recursos da biblioteca para fazer um levantamento bibliográfico e expor o acervo da biblioteca, que era riquíssimo. Acho que a gente pode promover feiras literárias, temáticas, que envolvam os dois equipamentos. E aqui também nós temos dois auditórios maravilhosos – um em que cabem 750 pessoas e outro em que cabem 100. Isso é importante, inclusive para trazer autores. Possibilidades não faltam.
Há outros desejos que o senhor gostaria de ver concretizados em exposições?
Todos esses de quem citei os nomes são desejos que já estão encaminhados. Eu vou ter um encontro com representantes da Embaixada da Alemanha. Eu adoraria trazer uma exposição solo do [George] Baselitz para cá, ou então o neofigurativismo alemão dos anos 80, que teve um grande impacto na Europa e, depois, no Brasil – e que seria ainda mais completo. Eu gosto muito de surrealismo mexicano. Agora, eu não posso pautar o museu por meio dos meus interesses pessoais. A gente tem uma comissão curatorial. A gente tenta discutir, e eu não teria tempo de assumir todas as exposições do museu. Eu assumi um papel de gerente, de administrador. O museu está em bom estado, mas em Brasília parece não haver uma política de manutenção – em todos os lugares, dos prédios públicos ao hotel em que estou.
O que pode ser destacado como seu objetivo à frente do Museu Nacional da República?
Ainda no que você disse lá no começo, eu acho que o museu não está apagado. Ele talvez não seja considerado um museu. Talvez seja considerado um monumento – o que não deixa de ser, porque é um museu muito extravagante. Ele é suntuoso, como toda Brasília é suntuosa. É monumental. É o primeiro museu em que eu entro em que a arquitetura é mais rica que o conteúdo. Eu acho que esse seria, a longo prazo, o meu maior objetivo – deixar o de dentro equivalente à arquitetura, o conteúdo do museu, o acervo do museu, a programação e a excelência do museu à altura do que foi investido nessa edificação.
“É o primeiro museu em que eu entro em que a arquitetura é mais rica que o conteúdo. Eu acho que esse seria, a longo prazo, o meu maior objetivo – deixar o de dentro equivalente à arquitetura”
Não acha estranho estar em um espaço sem janelas?
Não! Eu adoro Oscar Niemeyer. E queria fazer uma exposição para crianças cegas, porque o museu é uma experiência sensorial. Temos aqui [ao lado] a biblioteca, aqui estamos no museu e há um túnel subterrâneo [interligando os dois] que é lindo. Aqui eu tenho a sensação de dentro e de fora, de sentir o som aqui dentro, num lugar que não tem janela alguma, e quando eu vou lá eu me sinto massacrado por um céu maravilhoso. Então, eu queria que essas crianças entrassem no túnel, passassem pelas alças, subissem a rampa, sentisse o calor ou o frio… Mesmo para quem não pode ver, esse museu é uma experiência de sentidos. Tem uma coisa entre museu e biblioteca que não é só leitura e artes visuais. Enquanto houver solidão, enquanto houver tristeza, sempre haverá museus e bibliotecas abertas. São espaços de abrigo, de cura. Na Mário de Andrade eu via muitas pessoas que frequentavam a biblioteca sozinhas e faziam dali o lar delas. O que eu queria era que as salas de exposição fossem a lareira desse lar. Eu queria acender a chama e que essas pessoas se sentissem aquecidas e bem-recebidas aqui.
“Enquanto houver solidão, enquanto houver tristeza, sempre haverá museus e bibliotecas abertas. São espaços de abrigo, de cura”