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23/11/2019 às 16:21, atualizado em 28/11/2019 às 13:08
O cineasta Cacá Diegues, presidente do júri no evento deste ano, recorda, com humor, suas passagens pela cidade e revela o apoio de dona Sarah Kubitschek para a cultura nacional
No final dos anos 50, Cacá Diegues desembarcou em Brasília com o pai – então um servidor publico do Rio de Janeiro -, para conhecer as obras da cidade junto com uma comitiva. Trazia a tiracolo uma câmera de filmar e muitos sonhos na cabeça. De repente, do nada, pousa um helicóptero no meio do cerrado e desce o presidente Juscelino Kubistchek. Passos ligeiros, sorriso brilhante no ar, o chefe da nação ia apontando para o grupo, onde seriam erguidos os principais prédios da cidade. “Não tinha nada, só homens trabalhando”, ri. “Mas foi uma descoberta fantástica”, recorda ele que registrou a aventura num pequeno documentário perdido na poeira do tempo.
Um dos ícones do Cinema Novo, movimento que sacudiu o país nos anos 60, com um tipo de narrativa que privilegiava a realidade nacional, o diretor, hoje com 79 anos, chega ao 52º do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro na condição de presidente do júri. Bagagem tem de sobra. “É importante porque este festival faz parte da minha vida. É aqui que o Cinema Novo começou de uma maneira histórica com o Paulo Emílio Salles Gomes, o Nelson Pereira dos Santos. Então, para mim, é uma honra muito grande estar aqui como presidente do júri”, diz.
A relação de Cacá Diegues com Brasília e da cidade com uma das correntes cinematográficas mais relevantes da América Latina é intensa. A capital do país é madrinha de um dos projetos embrionários do Cinema Novo, a coletânea de curtas, “Cinco Vezes Favela”, já que contou com verba pública da extinta Fundação Cultural do DF, na época presidida pelo poeta maranhense, Ferreira Gullar.
Na primeira vez que participou da mostra competitiva do Festival, foi em 1966, com “A Grande Cidade”. Não levou o prêmio máximo. Perdeu para “Todas as Mulheres do Mundo”, trama protagonizada por Leila Diniz, de Domingo de Oliveira, mas o cineasta guarda boas lembranças dessa passagem. “Lembro do encontro com a turma da UnB, que criou o festival”. Dez anos depois, seria a consagração com “Xica da Silva” (1976). “Foi o ponto alto da minha carreira”, avalia.
Em entrevista à Agência Brasília, Cacá lembrou de suas primeiras vindas ao Distrito Federal, de como a primeira-dama, Sarah Kubistchek, deu uma mãozinha no surgimento do Cinema Novo, de como o movimento foi importante para o Festival e vice-versa.
Filmes importantes do Cinema Novo, “Vidas Secas” e “Os Fuzis”, surgiram na época do Festival de Brasília. Porque eles não foram lançados aqui naquele ano?
Na verdade, o Festival de Cinema de Brasília foi uma criação de pessoas muito importantes, como o Paulo Emílio Salles Gomes, o Nelson Pereira dos Santos, e esses filmes representavam o início do cinema novo. O Cinema Novo ficou internacionalmente conhecido nessa época graças ao “Porto das Caixas” (1962), que passou em vários festivais europeus, ao Ruy Guerra, que ganhou o Festival de Berlim com “Os Fuzis” (1964), e os dois filmes brasileiros na competição de Cannes que são “Vidas Secas” (1963) e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), além do meu, “Ganga Zumba”, que estava também em Cannes, na “Semana da Crítica”, que era uma mostra paralela. Esse foi o momento que o Cinema Novo ganhou o mundo. Eu não sei porque eles não entraram em Brasília, talvez porque não fossem inéditos.
O conceito do Festival de Brasília, muito do que ele tem no conteúdo, foi influenciado pelo momento político do país e pelos filmes do Cinema Novo que refletiam sobre o país, certo?
Os filmes do Cinema Novo não têm nada entre eles, cada um tem uma tendência e um estilo, exatamente porque uma das características do movimento era inaugurar um cinema autoral na América Latina, inclusive, foi o que nós fizemos. Agora, o que unia o Cinema Novo, foi essa ideia de construir uma cinematografia brasileira moderna, que registrasse imagens do Brasil que ninguém conhecia e falasse dos problemas sociais e humanos do país, temas que nunca estiveram no cinema brasileiro. Costumo dizer que o Cinema Novo é a chegada do modernismo no cinema brasileiro. Era um movimento que não só registra aquilo que só nós podíamos registrar, as imagens de um Brasil que poucos conheciam, assim como estabelece um caráter autoral e político nos filmes. É a fundação do cinema moderno no Brasil. É claro que isso contaminou outros segmentos da sociedade de maneira brutal porque essa era uma necessidade que o brasileiro estava tendo, sobretudo os mais jovens, que esperavam do cinema brasileiro, esperavam da cultura brasileira em geral, muito mais do que chanchadas ou as comediazinhas paulistas da Vera Cruz.
Pode-se dizer que o movimento modernista que fez surgir Brasília contagiou diretamente sua geração e o Cinema Novo?
Totalmente. Brasília foi o registro físico e monumental dos nossos sonhos. De um Brasil que tivesse linguagem própria. O golpe de 64 eliminou essa possibilidade. Nós vivemos, no final dos anos 50 e final dos anos 60 – na verdade até 68, porque na verdade o golpe foi em 64, mas a ditadura começa para valer em 68, com o AI-5 – nesse período, a minha geração, e isso não foi só no cinema, não, mas na cultura em geral, foi uma geração que se importou em criar uma coisa brasileira, de modo que pudesse contribuir para a civilização mundial com alguma coisa mais fraterna, generosa. A ideia era criar uma cultura brasileira que fosse a base de uma civilização nova. E o golpe de 64, inaugurado em 68, determina a nossa frustração. A gente achava que a câmera de cinema ia transformar o mundo, mas geralmente o que tomou o mundo foram as armas, as metralhadoras, o que tomou o poder.
Na verdade, sua história com Brasília começa bem antes da inauguração da cidade?
Meu pai era funcionário público, foi convidado para participar de uma comitiva para conhecer a cidade, as construções de Brasília. Havia umas promoções na época nesse sentido. Foi meu segundo curta-metragem, um documentário sobre essa viagem. Chegamos lá, o avião estacionou e aí apareceu o Juscelino, que desceu de um helicóptero e foi mostrando a cidade para gente. “Aqui era o Palácio do Planalto, ali os Ministérios, a gente olhava para o lado e não tinha nada”, ri. “Tinha um monte de operários trabalhando”. Aquilo para mim foi uma descoberta fantástica, um choque maravilhoso também, uma epifania. Brasília era a síntese do Brasil moderno que a gente queria. Isso era 1958. Depois virou outra coisa por causa da ditadura.
De certa maneira Brasília é um pouco madrinha do Cinema Novo graças ao Ferreira Gullar…
O Ferreira Gullar trabalhava em Brasília, ele era ligado ao CPC – (Centro Popular de Cultura), organização associada à União Nacional de Estudantes (UNE) – que foi o produtor do “Cinco Vezes Favela” – então ele conseguiu com o José Aparecido (mais tarde governador do DF nos anos 80 e então assessor de Jânio Quadros) um dinheiro para fazer o filme. A primeira coisa que conseguimos foi uma câmera com a primeira-dama, Sarah Kubistchek, por meio das Pioneiras Sociais. Então, Brasília teve uma participação importante para o surgimento do Cinema Novo, sobretudo simbolicamente porque era a cristalização daquilo que a gente queria, uma cultura moderna, que fosse um Brasil novo.
A primeira vez que você veio ao Festival foi em 1966, na segunda edição do evento, concorrendo com “A Grande Cidade”. Como foi essa experiência? Quais as recordações?
A primeira memória que me vem à cabeça dessa primeira participação minha no Festival foi o encontro com o pessoal da Universidade de Brasília (UnB), que foi o pessoal que inventou esse festival, que prestigiou o Paulo Emílio, prestigiou o Nelson Pereira, eles já estavam meio calados na época, por causa do golpe, mas ainda existia aquele movimento cultural do espaço, das coisas que aconteciam lá. Na verdade, o início do Festival de Brasília em 65, é o início do Cinema Novo, uma espécie de primeira plataforma nacional que o movimento teve para ser exprimir como um conjunto de obras.
Em 1976 você saiu consagrado do Festival de Brasília com “Xica da Silva” (1976), o grande vencedor da noite. O que representou esse momento para você?
Ganhar o Festival de Brasília com “Xica da Silva” (1976) foi marcante, o ponto alto da minha carreira. Foi um filme feito naquele período da abertura lenta e gradual anunciada pelo Geisel. Eu estava cansado daquela depressão, tristeza e “Xica da Silva” era o contrário disso tudo. Eu disse para mim mesmo ‘vamos torcer para o país novamente, não tenho que aceitar a tristeza como uma fatalidade, não, vamos lá, vamos em frente e o filme correspondeu muito isso, foi muito importante nesse sentido e no Festival o filme foi uma sensação, uma coisa formidável.
Você é o segundo cineasta a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Que importância esse reconhecimento tem para a categoria?
Na verdade, entrei para Academia para substituir o Nelson (Pereira dos Santos), até então era o único cineasta da Academia, mas tinha falecido. Então, incentivados por vários amigos, inclusive alguns da própria Academia, que não queriam deixar de ter um cineasta na casa, topei. Estou muito feliz lá porque estou conhecendo pessoas muito importantes.
Ser presidente do Júri da mais tradicional e relevante mostra de cinema do país é uma baita de responsabilidade?
Esse Festival faz parte da minha vida, faz parte da minha biografia, foi aqui que o Cinema começou de uma maneira histórica por meio do Paulo Emílio Salles Gomes e do Nelson Pereira dos Santos. Então para mim é uma honra muito grande estar aqui como presidente do júri desse evento tão importante para o cinema brasileiro.