16/01/2020 às 08:40

Nas placas de prédios da Asa Sul, o arcabouço do tempo

Uma de bronze na 107 lembra: aposentadoria de transportadores de cargas foi usada para erguer edifícios; na 108, outra ‘abre as portas da imortalidade àquele que concretizar a ciclópica obra’

Por Lúcio Flávio, Agência Brasília

Placas e bustos remontam tempos longínquos e são indícios de homenagens, reconhecimentos de feitos heróicos. Enfim, documentam fatos históricos. Era uma obsessão dos imperadores romanos, dos gregos antigos. Diga-se de passagem, também dos políticos. E não apenas. Em 1961, num jogo contra o Fluminense, Pelé, no Santos, fez um gol tão formidável, tão espetacular, que foi reverenciado com uma condecoração – uma simples placa. Mas nascia, assim, o “gol de placa”, sinônimo para algo extraordinário. O autor da expressão foi o jornalista Joelmir Beting.

Em Brasília, esses arcabouços do tempo estão nos lugares mais curiosos e inusitados. Às vezes, fazem tão parte do cotidiano dos brasilienses que muitos nem se dão contam da história que eles carregam. A  aposentada mineira Iná Moreira Miranda, talvez até por ser mineira, se dá conta. “Juscelino foi um homem importante para o país e, claro, para Brasília. Por isso aquela estátua bem ali dele”, diz, referindo-se à estrutura de bronze localizada abaixo do bloco E da quadra 206 Sul. “Muita gente fala que ele passava muito por aqui, gostava de tomar cafezinho com os porteiros e bebia no copo deles. Era um homem muito simples”, conta.   

Erguido em 21 de março de 1960, junto com uma grande placa, o busto foi uma “homenagem ao construtor de Brasília” concedida pelo Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase) que, naquela data, terminara o conjunto residencial de 11 prédios – um dos primeiros da cidade. Era ali que iriam morar os funcionários da instituição criada por Getúlio Vargas, em 1938. 

Ricardo e a filha Gabriela: JK como “vizinho”  | Foto: Renato Araújo/Agência Brasília

Neto e filho de pioneiros da cidade, Ricardo Zoghbi, de origem libanesa, lembra com carinho de uma relíquia de família todas as vezes que depara com estátua de JK próximo a sua residência. Trata-se de uma carta-convite para a inauguração de Brasília, assinada de próprio punho pelo presidente e endereçada ao seu avô, na época diretor geral do Tribunal Superior do Trabalho (TST). “É uma pena, mas de tanto mudar de endereço, essa carta se perdeu. Vários servidores que tinham um cargo importante na época receberam uma igual”, lamenta.

A vida dos outros
Porteiro há 28 anos do bloco I da 107 Sul, quadra ladeada pelo mítico Cine Brasília, o piauiense da região da Serra da Capivara Eron Soares da Silva tem muitas histórias para contar sobre o local em que trabalha, por quase três décadas, e seus personagens. 

Sobretudo porque ele tem o privilégio de ser os olhos e os ouvidos de dezenas dos moradores dos 48 apartamentos do prédio inaugurado em março de 1960 – um mês antes da inauguração da nova capital do país. Isso é o que revela a placa de bronze prensada na parede de cada um dos edifícios de seis andares construídos pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (Iapetc).

Por meio da vida dos outros, de suas lembranças e experiências de toda uma vida, fabulações do dia a dia, Eron reconstitui a memória do espaço que foi palco das primeiras edificações da cidade.

Também um dos primeiros conjuntos residenciais inaugurados em Brasília, em fevereiro de 1960, os 11 prédios da quadra 108 Sul também tiveram recursos oficiais, digamos assim, do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB). 

Todos trazem raras placas de inauguração de bronze, com dizeres pomposo do Marechal projetista José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1885 – 1959). “…Um dos maiores acontecimentos da história brasileira porque encerra a oportunidade de uma ressurreição político, econômico-administrativa e abre as portas da imortalidade àquele que concretizar a ciclópica e consagrada obra”, diz a inscrição.

Morador da quadra desde que nasceu, em 1972, o advogado Ronaldo de Albuquerque recorda com carinho dos tempos de guri, quando brincava livre, leve e solto embaixo dos blocos ou por entre as árvores. 

“Aqui era bem tranquilo, não tinha quase nada, as coisas estavam surgindo, esses figos gigantes ainda estavam crescendo”, volta no tempo. “É verdade, meus filhos ficavam solto por aqui, não tinha perigo nenhum, era uma maravilha”, concorda dona Iná Moreira Miranda, a moradora da 206 Sul.