04/10/2022 às 09:21

Histórias da expedição que explorou Planalto Central vão ganhar livro

Projeto do Arquivo Público do DF será disponibilizado para escolas e universidades do DF

Por Lúcio Flávio, da Agência Brasília | Edição: Carolina Lobo


Brasília, 28 de julho de 2022 –
Relatos de suor, sangue e lágrimas. E também de muita solidão e saudade. Eis os bastidores daquela que talvez seja a maior aventura realizada no coração do Planalto Central. E tudo começou com a vinda, no final do século 19, de uma comissão formada por 22 cientistas que explorou a região onde, no futuro, seria erguida a nova capital do país. Pois bem, os lados humano, sentimental e lírico dessa jornada, que duraria nove meses e mais de 5.100 km percorridos, em 1892, foram registrados em dois diários de campo que agora serão publicados em dois volumes pelo Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF).

“Essa publicação, inédita, por sinal, será um presente do Arquivo Público do DF à comunidade. Trata-se do documento mais importante sobre a comissão exploradora do Planalto Central que faz parte do nosso acervo, e poucos conhecem, e que deve estar disponível para estudantes e professores”Elias Manoel da Silva, historiador do ArPDFdireita

O projeto, resultado do trabalho de mais de três anos do historiador da instituição, Elias Manoel da Silva, e de outros especialistas convidados, marca as comemorações do centenário da instalação de um dos símbolos da transferência da capital para o cerrado: a pedra fundamental da futura capital federal, erguida nos arredores de Planaltina (DF), exatamente ao meio-dia de 7 de setembro de 1922, além do bicentenário da república.

Publicado, o material servirá de pesquisa para historiadores, jornalistas e qualquer entusiasta do surgimento da nova capital, com a obra sendo distribuída para outros arquivos públicos do país, universidades e escolas do Distrito Federal.

Para celebrar a data, há a ideia de uma exposição com itens que pertenceram aos integrantes da expedição e que fazem parte do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro. “A ideia é fazer essa publicação, tanto digital, quanto física, em outubro. E, graças a um convênio que fizemos com o Museu de Astronomia do Rio de Janeiro, deve haver uma exposição aqui e no Rio de Janeiro sobre a Comissão Cruls”, adianta o superintendente do ArPDF, Adalberto Scigliano.

“Essa publicação, inédita, por sinal, será um presente do Arquivo Público do DF à comunidade. Trata-se do documento mais importante sobre a comissão exploradora do Planalto Central que faz parte do nosso acervo, e poucos conhecem, e que deve estar disponível para estudantes e professores”, destaca o historiador do ArPDF.

Diários humanos

As cadernetas históricas pertenceram ao engenheiro militar Hastimphilo de Moura, um dos 22 integrantes do grupo que desbravou o sertão goiano em 1892, após determinação do presidente Floriano Peixoto. Os diários foram doados ao Arquivo Público do Distrito Federal em 1994, pelas mãos do ex-presidente da Novacap Luis Henrique Freire Duarte, que guardava os documentos de posse de seu pai, que por sua vez foi presenteado pela família do próprio militar.

“Como eu havia me estabelecido em Brasília e trabalhava na Novacap, meu pai me deu de presente”, lembraria o servidor da empresa pública, em entrevista ao ArPDF. “Eu guardei. Sabia que era uma coisa importante”, ressaltaria, à época.

Ao contrário dos registros técnicos feitos pelos outros membros do grupo formado por dois médicos, dois astrônomos, sete engenheiros, um higienista, um botânico, um geólogo, um farmacêutico, quatro civis e três militares, os apontamentos do maranhense de Itapecuru-Mirim, Hastimphilo de Moura, eram carregados de preciosos relatos humanos sobre o dia a dia dos homens na região.

Uma narrativa marcada por aventuras e desventuras tais como o contato direto com animais selvagens, caminhos inóspitos, agruras do tempo, além de brigas internas, medo do desconhecido, saudade de casa e, no caso do autor, do amor de cinema pela mulher, Lilinda, então morando no Rio de Janeiro e grávida do primeiro filho do casal.

“A viagem foi horrorosa e os caminhos muito em labirinto, de modo que nos perdemos”, escreveu o militar, explicando as dificuldades de locomoção nos estreitos caminhos da região. “Quanto mais me afasto da minha Lilinda, com mais saudade fico. Estou ansioso para voltar”, desabafava.

“É um instrumento paralelo de pesquisa, porque é uma caderneta pessoal que nos ajuda a ter uma visão mais humana do que foi a Comissão Cruls, as dificuldades que eles passaram para cumprir essa missão, solidão, brigas internas, fome, casos interessantes que não foram apresentados no relatório oficial”, comenta o superintendente do ArPDF, Adalberto Scigliano. “A publicação é uma forma de homenagear esses bravos homens”, reforça.

Paleografia

Além do próprio documento em si, serviram de base para a pesquisa dos dois volumes os depoimentos do filho de Hastimphilo de Moura, Aldmir de Moura, ao Programa de História Oral do Arquivo Público, e material jornalístico sobre o tema. A publicação está dividida em dois volumes. O primeiro compreende todo o conteúdo do Diário nº 1 e uma introdução técnica. A característica principal é ser uma publicação paleográfica, ou seja, respeitando a escrita da época em que foi elaborada.

“Não é uma publicação qualquer, é uma publicação paleográfica. O texto que foi escrito, do século XIX, 1892, vamos deixá-lo na íntegra, ou seja, farmácia com ‘ph’, a mesma acentuação, com a ortografia da época”, esclarece Scigliano.

Para ajudar na compreensão, os Diários de Hastimphilo de Moura estão recheados de inúmeras notas de rodapé. “Paralelo a esse texto original, foram criadas centenas de notas técnicas com explicações sobre cidades que mudaram de nome, significado de palavras antigas que não existem mais, informações sobre os instrumentos científicos, enfim, dados que ajudarão o leitor moderno a entrar na história da Comissão Cruls”, detalha.

O historiador Elias Manoel explica que, ao se debruçar sobre o texto, fez descobertas importantes, como o contato do bisavô do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso com o grupo de Luiz Cruls.

Já o segundo tomo apresenta o conteúdo do Diário nº 2 e inicia com uma biografia inédita do autor dos diários, contextualizando a vida de Hastimphilo de Moura, um jovem militar maranhense de 26 anos, amante dos cálculos, que tinha a extrema confiança do chefe da comissão, Luiz Cruls, e que alçou brilhante carreira no exército, chegando a ocupar o Governo de São Paulo, por alguns dias, nos anos 30.

“Tenho orgulho do meu avô. Se existe hoje Brasília, a nova capital do país, foi por causa do trabalho dele e da comissão”, diz, emocionada, a advogada Maria Lúcia de Moura, neta de Hastimphilo. “Com essa publicação estamos fazendo justiça a esse personagem importante para a história de Brasília”, endossa o historiador do ArPDF, Elias Manoel.